quinta-feira, 28 de maio de 2009

TREM DO PANTANAL... EU FUI!

O trem apitou, anunciando sua chegada à antiga estação ferroviária de Campo Grande. Estava com uma hora de atraso, e não tardou muito para que todos embarcassem na locomotiva, que apresentava um desgaste natural e uma visível falta de manutenção.
Isso se passou, lá pelos idos de 1983. Contava com meus 10 anos de idade e estava empolgada, pois, até então, minhas únicas experiências com transporte haviam sido o lombo do cavalo e o carro da família.
Adentramos à locomotiva, no vagão da classe econômica. Afinal, o dinheiro era curto, e a família numerosa. Lembro-me vagamente dos detalhes, mas o que não me esqueço é de como o assento era desconfortável, algo que se assemelhava a um plástico duro, resistente e sem nenhuma flexibilidade. Porém, tudo era novidade. Nunca fui dada a luxos e estava tendo a oportunidade de ver e de andar num trem, ao qual, antes, só conhecia pelos livros. E, também, oportunidade de conhecer a famosa cidade de Ponta Porã, que faz divisa com outro país, o Paraguai.
Conforme relatei anteriormente, o trem estava uma hora atrasado e não demorou muito para que ele começasse a se movimentar. Tinha ouvido comentários de que era um meio de transporte lento. Mas, o que presenciava era um veículo bastante ágil.
Ar condicionado, naquela época, era artigo de luxo. Portanto, as janelas permaneciam todas abertas, com vento, muita poeira e, em algumas vezes, os galhos das árvores batiam e espalhavam folhas pelo lastro do vagão, sujando tudo. Mas ninguém se importava!
Era também um “calacatraca” (som do contato das rodas de ferro com os trilhos) que não parava mais. Era engraçado observar os passageiros, num sacolejar sem fim, batendo seus corpos horas e horas. E, saboreavam suas “matulas” (lanches e bebidas preparados em casa), pois o trem, na classe econômica, não tinha serviço de bordo.
Apesar de proibido, gostava também de enfiar a cabeça pela janela e sentir o vento no rosto, sem me importar se o “penteado” se transformaria num emaranhado de cabelo sem forma.
Não me recordo de quantas vezes o trem fez suas paradas. Mas, a cada uma delas, lembro-me de que o apito era o aviso de chegada e o adeus de partida. Era tudo muito rápido, embarque e desembarque. E, na plataforma, avistava-se quem estivesse esperando por alguém, ou se despedindo de alguém.
Devia haver, no trem, um vagão-restaurante, mas, acho que nem cheguei a conhecer. Meu pai, um sistemático (inveterado), não nos permitia ficar vagando. Tínhamos que ficar todos juntos e sentados. Acho que era uma forma de não nos perdermos. Não sei...
Finalmente, com uma hora adiantada (eu disse com uma hora adiantada), só para se ter uma ideia de como aquela locomotiva voou nos trilhos, chegamos à empoeirada cidade de Ponta Porã. Empoeirados também estávamos, dos pés à cabeça, cabelos desgrenhados e com calos nos pés e nas nádegas.
Confesso ter ficado feliz com a experiência. Mas, quando meu pai nos perguntou se preferiríamos voltar de trem ou de ônibus, fomos unânimes em dizer que seria muito legal voltar de ônibus.
Hoje, com o olhar crítico de adulta, confesso não ter sido a melhor experiência. Mas, na época, para quem quase não tinha a oportunidade de sair e, principalmente, viajar, foi algo que ficou gravado em minha memória.
Algum tempo depois, soube da triste notícia de que o trem não mais iria trilhar pelos campos verdejantes, levando seus passageiros, pois seriam necessários muitos investimentos para sua manutenção.
O tempo passou... Nas minhas andanças pelo mundo, tive oportunidade de sentir aquele frio na barriga, peculiar das aterrissagens e decolagens de avião. Experimentei a sensação de ser uma ilha, quando, do mais alto ponto de um navio, pude contemplar o mar, em seu esplendor. Fiz minha segunda viagem de trem. Dessa vez, fora do país. Algo totalmente diferente da minha primeira vez. País de primeiro mundo. Trem de primeiro mundo. E não era nenhum trem-bala. Pelo contrário, seguia vagaroso pelos trilhos, com possibilidade de se apreciar a bela paisagem.
Nostalgicamente, lembrei-me daquele velho trem de ferro, das nossas belas paisagens e de como seria maravilhoso se o reativassem, para que pudéssemos admirar as belezas do Pantanal. Mas, eram apenas devaneios... ou, talvez, utopia.
Qual não foi a minha surpresa, quando ouvi um zunzunzum de que havia um projeto de revitalização do Trem do Pantanal... Era sonho se tornando realidade.
E, finalmente, marcaram a data para a inauguração: 8 de maio de 2009. E, pela repercussão no rádio, na TV e internet, seria coisa de gente grande! O comentário era geral! Até o Presidente da República, Lula, e o Presidente do Paraguai, Fernando Lugo, estariam presentes à solenidade.
Um comichão percorreu meu corpo. E, por um instante, devaneei e me vi entrando naquele antigo trem, mas, agora, encontrava-o todo reformado, o cheiro do couro de suas poltronas penetrando pelas minhas narinas. Num relance, fiz novamente contato com a terra e vislumbrei a triste realidade: para os pobres mortais, ainda demoraria um pouco desfrutar desse passeio no tempo.
E, de fato, o grande dia chegou! Todas as autoridades presentes, faixa de inauguração cortada, o apito do trem ressoou majestoso e, vagarosamente, começou a percorrer o tão almejado caminho das guaviras, do cerrado, dos pássaros e de tantos outros animais e aves do Pantanal.
Busquei informações sobre a viagem, que estaria aberta ao público. Data prevista, 16 de maio. O preço das passagens, nas categorias econômica e turística, era razoável. Na executiva, nem tanto. Mas, apesar de o tempo ter passado, continuo sem frescura e, em qualquer que fosse a classe, o mais importante seria relembrar momentos guardados no fundo da memória.
Noite de sexta-feira, 7 de maio, a semana havia sido um corre-corre de dar gosto! O professor falava, falava... eu já não conseguia escutar... Meus pensamentos estavam no intervalo e, depois, no final da aula. De repente, algo me chamou a atenção... uma mensagem no celular. Meio displicente, tateei o aparelho e, quando li, meus olhos não acreditavam no que eu via. A mensagem, era de uma grande amiga. Dizia: “Vamos sair de casa, amanhã, às 6h30min, de van, rumo ao Trem do Pantanal. Estou te esperando. Me liga. Beijos”.
Naquele momento, passou o cansaço, o sono, a letargia... minha vontade era sair correndo pela sala e contar a novidade para todos os que ali estavam. Saí da sala e liguei, querendo saber todos os detalhes, como surgira o convite de última hora... Tudo.
Ela não entendia muito minha euforia. Mas contou que, além dos jornalistas e donos de agência de viagem, haveria alguns convidados que fariam parte da segunda viagem do trem e que havia se lembrado de mim. Caramba! Tudo perfeito! Nem estava acreditando que as coisas pudessem estar acontecendo tão cedo e daquela forma!
Agradeci e confirmei que, antes do horário combinado, estaria lá.
Naquela noite, quase nem dormi... Viajei no tempo... Por algum motivo, lembrei-me do meu pai e “bateu” uma saudade muito grande... Sua presença marcante me acompanha. Mas, parei de ficar pensando no passado e tratei de dormir. Afinal, sábado seria o dia “D”.
Estava acostumada a acordar tarde. Mas, naquele dia, nem bem o sol despontava, e eu já estava pronta. Rapidamente, eu e meu filho, nos arrumamos para o que seria uma “viagem no túnel do tempo”.
Encontramo-nos no lugar marcado e rumamos para a cidade de Indubrasil, onde o trem iniciaria seu trajeto. Euforias à parte... Todos os que estavam reunidos no terminal ferroviário não escondiam o contentamento de estarem ali.
O trem apitou... Um arrepio percorreu meu corpo... Disfarcei as lágrimas e segui a multidão, que se aglomerava nas portas de entrada dos vagões. Observando o alvoroço, percebi em muitos um olhar saudosista, de quem estava retornando depois de ter vivenciado aquele trem em outra época.
E mais uma vez o apito anunciou a partida do trem... Tudo ali dentro estava mudado. Do velho trem só sobrou a saudade. Os vagões ganharam tons lilás, desenhos estilizados e poltronas estofadas. Moderno e antigo se misturavam nas fotos que relembravam a antiga estação em Campo Grande e seu movimento intenso nos tempos áureos.
Por ser quase uma viagem inaugural, todos os 280 passageiros podiam trafegar pelo trem, independentemente de seus bilhetes serem da classe econômica, turística ou executiva. Era um vai-e-vem de crianças, garçons, repórteres, cinegrafistas e demais passageiros. Todos querendo conhecer tudo.
Um repentista e tocador de berrante nos encantou com sua inteligência e rapidez no pensamento. Mais uma vez, as lembranças do meu velho pai se fizeram presentes. Ele tocava berrante como ninguém e emocionava a quem o ouvia.
No vagão-restaurante, uma surpresa: um trio apresentava suas canções maravilhosas e atendia aos pedidos de quem quisesse ouvir uma bela música... “Mercedita”... E tantas outras.
E, por onde passava, o trem atraía a atenção. Velhos, jovens, crianças, pessoas dentro de seus carros, na rodovia; cavaleiros levando a boiada; até os mais tímidos acenavam ao ouvir o apito. Nas pequenas cidades ou nos vilarejos, acenávamos, feito crianças na janela, e todos respondiam ao cumprimento, com um aceno de mão e um sorriso no rosto.
E, assim, a viagem transcorreu na mais perfeita ordem. O problema do não funcionamento do ar condicionado até que foi providencial, pois, dessa forma, poderíamos abrir as enormes janelas e sentir o vento no rosto... Tal qual na primeira vez.Depois de quase cinco horas, chegamos a Aquidauana, nosso destino final... O trem ainda seguiria até Miranda. Meu sonho havia se realizado. Ao desembarcar na bela estação ferroviária da cidade, foi como se um ciclo tivesse terminado... Mas, penso que, na verdade, é apenas o começo de outras tantas viagens pelo Trem do Pantanal.

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